domingo, maio 06, 2012


Campanha Diferente

Esperava por si, justamente aqui, para tratarmos de assunto sério, falou-me Capistrano, velho amigo agora no Plano Espiritual, que conheci maduro e próspero, em pequena loja do Botafogo, ao tempo em que ainda me acomodava na carcaça enferma.

Em torno de nós, na esquina da rua Real Grandeza, grupos fraternos de amigos desencarnados chasqueavam, alegres, dos carros que despejavam criaturas e flores pra as comemorações dos finados, junto ao aristocrático cemitério São João Batista.

Corbelhas e buquês, recordando joias da primavera, derramavam-se de mãos ricas e pobres, engelhadas e juvenis, em homenagem aos afectos queridos, que quase todos os visitantes supunham para sempre estatelados ali no chão.

- Soube, meu caro, - prosseguiu Capistrano singularmente abatido, - que ainda escreve para os vivos do mundo...

E, apontando para respeitável matrona, acompanhada de dois carregadores portando ricos vasos, continuou:

- Grafe uma crónica, recomendando a extinção de semelhante excessos. Mostre a inconveniência do orgulho na casa dos mortos imaginários da Terra, que hoje reconhecemos deve ser um recinto de silêncio e oração. Em toda a parte, o progresso marca no mundo admiráveis alterações. Guerras modificam a geografia, apóstolos renovam leis, a civilização aprimora-se, engenhos varrem o espaço, indicando a astronáutica do futuro, no entanto, com raras excepções de alguns países que estão a converter necrópoles em jardins, os nossos cemitérios repousam estanques, lembrando parques improdutivos, onde se alinham primorosas plantas de pedra sobre montões de batatas podres. Órgãos de fiscalização e sistemas de vigilância controlam mercados e alfândegas, na salvaguarda dos interesses públicos e ninguém coíbe os investimentos vãos em tanta riqueza morta.

Capistrano fitou-nos, como a verificar o efeito das palavras que pronunciara, veemente, e seguiu adiante:

- Imagine você que também errei por me faltar orientação. Tive uma filha única que foi todo o encanto de minha viuvez dolorida. Marília, aos dezoito janeiros, era a luz de minh’alma. Criei-a com todo o enternecimento do jardineiro que observa, enlevado, o crescimento de uma flor predileta. Entretanto, mimada por meus caprichos paternos, minha inexperiente menina negou-me todas as previsões. Enamorou-se, na praia, de um rapaz doidivanas, que se entregava aos exercícios da bola, e, certa feita, menosprezada por ele, tomou violenta dose de corrosivo relegando-me à solidão. Ao vê-la, nas raias da agonia, sem que meu amor pudesse arrebatá-la ao domínio da morte, rendi-me dementado, a total desespero. Nunca averiguei as razões que lhe ditaram atitude assim tão drástica e jamais procurei o moço anónimo que, decerto, ao abandoná-la, não teria a intenção de a fazer infeliz. Passei, no entanto, a cultuar-lhe loucamente a memória. Despendi mais da metade de minhas singelas economias para lhe erigir um túmulo de alto preço... E, por vinte anos consecutivos, adorei o monumento inútil, lavando frisos, fazendo lumes, mudando enfeites, plantando flores. Envelheci chorando sobre a lápide, e quando os meus olhos divisavam o custoso jazigo, tateava o relevo das chorosas legendas...

Um dia, chegou a minha vez. O coração parou, deslocando-me do corpo hirto. No entanto, embora desencarnado, apeguei-me ao sepulcro que venerava, estirando-me nele. Se amigos logravam afastar-me para este ou aquele mister, acabava tornando ao formoso monstro de mármore para me lamentar, clamando pela filha que não conseguia ver. Quatro anos rolaram sobre a minha aflitiva situação, quando, em determinada manhã, experimentei comentário indizível, sentindo-me à feição da terra gelada que se reaviva ao calor do sol. Inexplicavelmente contemplava Marília na tela da saudade, como se lhe fosse receber, de novo, o beijo de amor e luz, quando antigo orientador me buscou, presto, e me conduziu, bondoso, à rua General Polidoro, apontando-me um homem suarento e cansado, a carregar ternamente, nos próprios braços, triste menina muda, paralítica e pobre... Ao fixar-lhe os olhos embaciados de criança-problema, a realidade espiritual clareou-me a razão. Surpreendera Marília reencarnada, em rudes padecimentos expiatórios, e, mais tarde, vim a saber que renascera como filha do mesmo homem que lhe fora motivo ao gesto tremendo de deserção... Desde essa hora, fugi das ilusões que me prendiam a pesadelo tão longo!... Acordei renovado, para novamente respirar e viver, trabalhar e servir...

Capistrano enxugou o pranto que lhe corria copioso e ajuntou com amargura:

- Escreva, meu amigo, escreva às criaturas humanas e informe, claramente, que os vivos da espiritualidade agradecem o respeito e o carinho com que se lhes dignificam os restos, mas rogue para que se abstenham destes quadros fantásticos de vaidade ostentosa, com que se pretende honrar o nome dos que partiram... Peça para que socorram as crianças desajustadas e enfermas, enjeitadas e infelizes com o dinheiro mumificado nestes cofres de cinza... Diga-lhes para que se compadeçam dos meninos desamparados e que provavelmente, muitos desses entes inolvidáveis que procuram nos carneiros de luxo (jazigos), estão hoje em provações cruéis, nos institutos de correcção ou no leito dos hospitais, na ociosidade das ruas ou em pardieiros esburacados que o progresso esqueceu... Fale da reencarnação e explique-lhes que muitos dos imaginados mortos que ainda amam, jazem sepulcros em corpos vivos, quase sempre, desnutridos e atormentados, suplicando alimento e remédio, refúgio e consolação...

A palavra do amigo silenciou, embargada de lágrimas,e aqui me encontro, atendendo à promessa de lhe redizer a história numa página simples. Entretanto, não guardo a pretensão de ser prontamente compreendido, uma vez que se estivesse na avenida Rio Branco ou na Praça Mauá, envergando impecável costume de linho inglês, entre homens ainda encarnados, eu diria também que este caso é um conto de mortos para mortos, e que os mortos devem estar mortos sem preocupar a ninguém.

Espírito Irmão X

"Relatos da Vida" / Irmão X / Psicografiade Francisco Cândido Xavier / Ed. CEU

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"Relatos da Vida" [prefácio]

Amigo Leitor!

Muitos companheiros da vida física supõem erroneamente que nós, os amigos desencarnados que comentamos as necessidades de paz e os imperativos do bem, teremos chegado a tão grandes culminâncias de evolução que não nos são precisas as reuniões de estudo e a troca de opiniões na pauta de nossas experiências.

Entretanto, ainda nos achamos distantes de qualquer topo do Conhecimento Superior e é justo valer-nos do auxílio de companheiros iluminados de Amor e Sabedoria a fim de descobrir, por nós mesmos, os caminhos mais favoráveis à nossa própria renovação e progresso.

Os grupos de estudos nas nossas áreas de trabalho multiplicam-se em todos os sectores, nos quais se reúnem almas sequiosas de esclarecimento e consolo.

A instrução não se transmite por osmose.

Assim é que compartilhamos de uma equipe desta ordem, uma vez por semana, em que são debatidos vários temas, notadamente os que se reportam ao nosso intercâmbio com os amigos reencarnados na Terra.

Em cada reunião, dedicamos a faixa e uma hora, na parte final, ao diálogo com irmãos procedentes da vida física, que são seleccionados por inspectores competentes e auxiliados por eles, de modo a virem até nós, durante o sono tranquilo e profundo.

Não precisamos mencionar que a selecção obedece a rigorosa escolha para que não se perca tempo com assuntos banais e conversações vazias.

Numa das nossas reduzidas assembleias, tivemos a visita de um rapaz, vinculado a uma das instituições beneméritas do Estado do Rio, que irradiava bondade e inteligência, a falar-nos sem afectação:

- Estou muito grato por me receberem e não vos tomarei tempo em vão. Ouso perguntar pelo Irmão X. Desejaria saber, se possível, por que motivo não mais escreveu livros para a nossa edificação no mundo, ao mesmo tempo que estimaria saber se podemos aguardar novas produções desse amigo.

Solicitamos a palavra do Irmão X, ali presente e, com simplicidade, ei-lo a responder:

- Amigo, agradeço-lhe o interesse, mas não estou inactivo. Apenas, por algum tempo, troquei a pena pela enxada de serviço. Por vastos períodos anuais, estive na teoria. Agora estou na prática da assistência, na qual vivo a aprender e a renovar-me. Mas retomarei a pena, se o Senhor assim permitir.

O moço agradeceu e retirou-se, dando lugar a novo visitante...

No dia seguinte, o Irmão X mostrou-nos uma pasta antiga, da qual retirou vários retalhos de pergaminho contendo apontamentos valiosos e valiosos relatos da vida, com os quais formou o presente volume.

Aí está, leitor amigo, a história deste livro que o nosso amigo passa à frente, para a nossa própria edificação.

Emmanuel / Uberaba, 22 de Marco de 1988.
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